quinta-feira, agosto 25, 2005

A Chegada do Navio - Kahlil Gibran

O Profeta - Kahlil Gibran - http://www.starnews2001.com.br/kahlil/profeta.pdf

Cap.1 - A Chegada do Navio

      Almustafa, o escolhido e bem amado, que era aurora do seu próprio dia, esperara doze anos na cidade de Orfalés pelo navio que havia de o recolher e levar de volta à sua ilha natal.

      E no décimo segundo ano, no sétimo dia de Eilul, o mês das colheitas, subiu à colina sem muralhas e pôs-se a olhar para o mar; e viu o seu navio aparecer com a bruma.

      Então as portas do seu coração abriram-se e a sua alegria voou longe sobre o mar. E ele fechou os olhos e orou no silêncio da sua alma.

      Mas enquanto descia a colina, apoderou-se dele uma grande tristeza e pensou com o coração:

      Como poderei partir em paz e sem mágoa? Não, não vou sair da cidade com uma ferida no espírito.

      Muitos foram os dias de dor que passei dentro das suas muralhas, e muitas foram as noites de solidão; e quem pode separar-se da dor e da solidão sem mágoa?

      Espalhei demasiados fragmentos do espírito por estas ruas, e muitos são os filhos da nostalgia que caminham nus por estas colinas, e não posso afastar-me deles sem peso nem dor.

      Não é a roupa que hoje dispo, mas uma pele que arranco com as minhas próprias mãos.

      Nem é um pensamento que deixo atrás de mim, mas um coração tornado doce pela fome e pela sede.

      No entanto, não posso demorar-me mais.

      O mar que chama todas as coisas, chama-me também e tenho de embarcar.

      Pois ficar, embora as horas escaldem na noite, é gelar e cristalizar e perderme numa forma.

      De bom grado levaria tudo o que aqui se encontra. Mas como o poderei fazer?

      Uma voz não pode transportar a língua e os lábios que lhe deram asas. Terei de procurar sozinho o etéreo.

      E solitária e sem ninho a águia atravessará o sol.

      Quando chegou ao fundo da colina, voltou-se para o mar e viu o seu navio aproximar-se do porto, e na proa os marinheiros, os homens da sua pátria.

      E a sua alma gritou-lhes e ele disse:

      Filhos da minha velha mãe, vós, cavaleiros das marés,

      Quantas vezes velejastes nos meus sonhos. Agora apareceis no meu despertar, que é o meu sonho mais profundo.

      Pronto estou eu para ir, e a minha ânsia pelas velas desfraldadas aguarda o vento.

      Só respirarei mais uma vez neste ar imóvel, só mais um olhar de amor para trás,

      E então encontrar-me-ei entre vós, um marinheiro entre marinheiros.

      E, enquanto caminhava, avistou ao longe homens e mulheres que saíam dos campos e das vinhas e se apressavam em direção aos portões da cidade.

      E ouviu as suas vozes chamarem-lhe o nome, gritando de campo para campo, anunciando uns aos outros a chegada do navio.

      E disse para consigo:

      Será o dia da partida o dia da reunião?

      E poderá em verdade ser dito que a minha noite foi a minha aurora?

      E que darei àquele que deixou a charrua a meio de um sulco ou àquele que fez parar a roda do seu lugar?

      Tornar-se-a o meu coração uma árvore carregada de frutos que eu possa reunir para lhes dar?

      E conseguirão os meus desejos fluir como uma fonte para que eu possa encher-lhes os cálices?

      Sou uma harpa que a mão dos poderosos pode tocar, ou uma flauta cujo sopro passa por mim?

      Sou aquele que procura os silêncios, e que tesouros encontrei nos silêncios que possa dispensar com confiança?

      Se este é o dia da minha colheita, em que campos espalhei a semente, e em que esquecidas estações?

      Se esta é verdadeiramente a hora em que erguerei a minha lanterna, não é a minha chama que lá irá arder.

      Erguerei a minha lanterna vazia e escura.

      E o guardião da noite enchê-la-a de petróleo e alumiá-la-a.

      Estas coisas disse ele em palavras. Mas muito no seu coração ficou por dizer.

      Porque ele próprio não podia falar do seu segredo mais profundo.

      E quando entrou na cidade todos vieram ter com ele, e todos choravam a uma só voz.

      E os anciãos da cidade avançaram e disseram: Não te apartes ainda de nós. Tu foste o sol do meio dia no nosso crepúsculo, e a tua juventude deu-nos sonhos para sonhar.

      Não és nenhum estranho entre nós, nem um hóspede, mas nosso filho eleito e adorado.

      Que os nossos olhos não sofram ainda por deixar de te ver.

      E os sacerdotes e sacerdotisas disseram-lhe:

      Não deixes que as ondas do mar nos separem agora, e que os anos que passaste entre nós se transformem numa recordação.

      Caminhaste entre nós como um espírito, e a tua sombra tem iluminado os nossos rostos.

      Muito te temos amado. Mas o nosso amor era sem palavras, e coberto com véus.

      E agora grita bem alto e desvenda-se perante ti.

      É que o amor só conhece a sua profundidade na hora da separação.

      E outros chegaram e com ele falaram.

      Mas ele não lhes respondeu. Limitou-se a curvar a cabeça; e aqueles que se encontravam perto viram as lágrimas cairem-lhe sobre o peito.

      E ele e os outros dirigiram-se para a grande praça frente ao templo.

      E do santuário saiu uma mulher que se chamava Almitra e era vidente.

      E ele olhou-a com grande ternura, pois fora ela a primeira que acreditara nele quando estava na cidade havia só um dia.

      E ela disse-lhe:

      Profeta de Deus, na busca do supremo, muito procuraste as distancias do teu navio.

      E agora o teu navio chegou e tu tens de ir.

      Profunda é a ânsia pela terra das tuas memórias e pelo paradeiro dos teus maiores desejos; e o nosso amor não te vai reter, nem as nossas necessidades te prenderão.

      E agora que vais partir pedimos-te que fales conosco e nos reveles a tua verdade.

      E nós passá-la-emos aos nossos filhos, e eles aos filhos deles e ela nunca morrerá.

      Na tua solidão observaste os nossos dias, e no teu despertar ouviste o choro e o riso do nosso sono.

      Agora revela-te a nós, e diz-nos o que te foi mostrado e que existe entre o nascimento e a morte.

      E ele respondeu:

      Povo de Orfalés, de que vos poderei falar, exceto daquilo que agora se está a passar nas nossas almas?

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